Nos últimos dias de Março chegaram imagens impressionantes de um gigantesco porta-contentores encalhado no canal do Suez e a consequente interrupção da circulação de mercadorias entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. Mas mais do que o acontecimento, foi o local que nos trouxe à memória os escritos de Eça de Queiroz sobre a inauguração do canal do Suez.
O canal do Suez foi inaugurado a 17 de Novembro de 1869, ligando Port Said (no Mediterrâneo) a Suez (no Mar Vermelho). Com 193 km de comprimento e várias intervenções para expansão e adequação a navios de maior calado, esta obra foi pensada e promovida por um diplomata francês, Ferdinand De Lesseps, que Eça conheceu durante a viagem de inauguração.
Eça de Queiroz foi convidado pelo amigo de infância e futuro cunhado, D. Luís de Castro Pamplona (Conde de Resende) a ir à inauguração do canal do Suez. Embarcaram em Lisboa a 23 de Outubro de 1869, com paragem em Cadiz, Gibraltar e Malta, chegando no dia 5 de Novembro a Alexandria. A incursão pelo Egipto seguiu até ao Cairo onde realizaram várias excursões aos locais mais emblemáticos. As suas notas de viagem seriam compiladas e publicadas postumamente pelo seu filho José Maria, sob o título “O Egipto – notas de viagem”.
A viagem de Port Said a Suez
E o grande dia chegou em que partiram do Cairo, de comboio, até ao porto de Alexandria onde embarcam no «Fayoum» em direcção a Port Said. Eça, a sua memória fotográfica e as suas notas servirão para a redacção de textos a propósito desta aventura entre o Ocidente e o Oriente. Mais do que uma reportagem, o então jovem Eça transporta-nos para uma viagem literária. São descritas as paisagens naturais e humanas que vai descobrindo à medida que o navio desce até Suez, relatando um território de contrastes entre a fertilidade do vale do Nilo e os desertos que se estendem ao Sinai. As palavras do Eça jornalista são imagens vivas, coloridas, com textura de sons e cheiros que nos fazem viajar até um tempo antigo, entre faraós e profetas bíblicos. Curiosamente sobre a obra de engenharia propriamente dita não nos adianta grande coisa, dando mais enfoque ao trabalho humano usado para rasgar um canal entre rochedos, lodaçais e areias.
Nos artigos que serão publicados no Diário de Notícias, Eça descreve-nos todos os pormenores da viagem de inauguração, do cortejo dos navios do paxá que levavam a bordo trezentos convidados. Elites reais ocidentais e orientais estiverem presentes. Houve brilho, glamour, música, mas também navios encalhados logo a partir de Port Said e que puseram em risco o sonho de ligação entre a Europa e a Ásia, via o istmo de Suez. Ultrapassados estes percalços e terminada a cerimónia de inauguração na baía de Port Said, o cortejo seguiu pelo canal parando em Ismailia. Esta cidade deixa Eça de tal maneira deslumbrado que dirá “Ismailia poderá vir a ser a capital europeia do velho Egipto (…)”. O contacto com as águas do Mar Vermelho emocionaram Eça, ao trazer à lembrança estes lugares bíblicos, dos hebreus guiados por Moisés rumando a Canaã e ao Sinai. A chegada a Suez é o fim da viagem de inauguração do canal.
“Tínhamos feito a nossa peregrinação através do canal; a esquadra da Europa tinha as suas âncoras no mar Vermelho; a obra de Mr. De Lesseps estava completa. Havia dez anos que um grupo de trabalhadores, numa segunda-feira de Páscoa, estava reunido na praia, no lugar que depois foi Port Said; não havia nada nesse lugar, senão a bandeira egípcia plantada sobre a areia. Um homem saiu do grupo, descobriu-se, e disse: «Em nome da companhia de Suez, dou a primeira pancada de alvião neste terreno que abrirá às raças do Oriente a civilização do Ocidente.» E cavou a areia com o alvião. O homem que disse aquelas palavras era Mr. De Lesseps: e, como se vê, a pobre pancada de alvião tem feito largamente o seu caminho.” “De Port Said a Suez, 1870” in Notas Contemporâneas, Obras de Eça de Queiroz, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 2000
A primeira parte da viagem ao Oriente termina em Suez. Recorda tempos bíblicos e a vontade de percorrer esses locais concretiza-se na continuação da viagem pela Síria e Palestina, Jafa (Tel Aviv), Jerusalém, Betânia, Belém, Beirute. O regresso a Portugal inicia-se a 26 de Dezembro e aportam à capital a 3 de Janeiro de 1870.
No regresso a Portugal, o director do Diário de Notícias convidou o jovem Eça (24 anos) a redigir um conjunto de crónicas sobre este acontecimento. Eça fora uma testemunha dos vários eventos e que seriam relatados em 4 artigos redigidos em forma de carta e publicados em Janeiro de 1870 na coluna Folhetins.
Do Egipto à Palestina com Teodorico Raposo
O impacto que terá a segunda parte da viagem de Eça ao Oriente é evidente no romance publicado em 1887, A Relíquia. O Teodorico Raposo que sai de Lisboa em direcção à Palestina, com uma missão supostamente piedosa, não deixa de ser uma recordação ainda bastante vívida da viagem que o escritor fizera 18 anos antes. A Relíquia relata as aventuras e desventuras de Teodorico, a sua relação com a Tia Patrocínio e uma viagem exótica à Terra Santa disfarçada de “peregrinação”. Escreve Eça: “(…) [Teodorico] tendo comprado um «Guia do Oriente» e um capacete de cortiça, informei-me, sobre o modo mais deleitoso de chegar a Jerusalém (…). Embarcaria no «Málaga», vapor da casa Jadley que, por Gibraltar, e depois por Malta, me levaria, num mar sempre azul, à velha terra do Egipto. Aí um repouso sensual na festiva Alexandria. Depois no paquete do Levante, que sobe a costa religiosa da Síria, aportaria a Jafa (…); e de lá (…) veria, ao fim de um dia e ao fim de uma noite, (…) as muralhas de Jerusalém.” (in Eça de Queiroz, A Relíquia, Editora Livros do Brasil, 2007)
Desafiamos o leitor a ler ou a reler A Relíquia porque em breve esta nossa visita guiada, em Lisboa, voltará a ser agendada! Fiquem atentos ao site, subscrevam a newsletter.
As nossas sugestões de leitura & visita virtual
Nestes dias de recolhimento, os livros continuam a ser uma boa opção de viagem através das imagens que as palavras nos oferecem. E ainda melhor se “lermos” as viagens que Eça e Teodorico fizeram, acompanhados de um atlas e seguir pela ponta dos nossos dedos os territórios percorridos. Além da já referida obra queirosiana, deixamos ainda esta sugestão de leitura: Luís Manuel Araújo, Imagens do Egipto Queirosiano. Recordações da jornada oriental de Eça de Queirós e o Conde de Resende em 1869. E para rever o Egipto do Eça podem ainda assistir à tertúlia “O Egipto na Literatura e Vida de Eça de Queiroz” que teve recentemente lugar no Museu da Farmácia.